O balanço das chegadas e partidas

Neste dia 25 de julho de 2018 comemoramos uma data especial para a Suno Research. Estamos lançando o segundo livro da coleção “Guia Suno”. Trata-se do “Guia Suno de Contabilidade para Investidores: Conceitos contábeis fundamentais para quem investe na Bolsa”.

Deixarei a formalidade de lado para reconhecer que lançar um livro é como ver um filho nascendo. Como pai de uma menina de cinco anos, afirmo isso por experiência própria. São meses gestando algo que amamos mesmo sem conhecer seus contornos definitivos.

Quando um livro é escrito em parceria, a analogia com a gestação se completa. O livro, assim como uma criança, carrega o DNA amalgamado de seus pais. Minha esposa não se importará se eu declarar que não poderia ter parceiro melhor para escrever um livro: o Tiago Reis.

Em busca do equilíbrio

O fundador da Suno Research tem brilho próprio. Ele poderia escrever os livros da Suno sozinho. Porém, além de sua perspicácia, ele é conhecido por sua generosidade. Ele me concedeu a honra de ajudá-lo nesta tarefa de levar conhecimento básico para uma nova geração de investidores brasileiros.

Leal e afável no trato pessoal, em seu ofício o Tiago Reis é um analista de valores cético e compenetrado. Suas avaliações sobre empresas e fundos imobiliários são objetivas e incisivas. Isso é ótimo. É assim que ele defende o interesse de investidores que prestigiam o trabalho da Suno.

Se uma empresa que entrega ótimos dividendos emite sinais de fumaça ele avisa sem dó. Não tem essa história de ser conhecido dos gestores. Se o futuro do investidor está em jogo, o Tiago será leal ao investidor, mais do que ao negócio que apresenta problemas.

Sou diferente do Tiago. Sou mais emotivo. Não é de meu feitio me pronunciar com palavras secas, mesmo quando o assunto necessita ser desidratado de sentimentos. Minha porção de sangue italiano me faz entregar um texto como se fosse um móvel de madeira envernizado.

Talvez por isso o Tiago tenha me convidado para escrever livros em parceria com ele. De certo modo nos complementamos na produção de textos. A balança de pratos com pesos diversos na capa do “Guia Suno de Contabilidade para Investidores” não é apenas uma analogia para os Balanços Patrimoniais, que colocam os ativos de uma empresa de um lado e os passivos do outro. De certo modo, essa balança também representa a nossa parceria.

Uma mão dá – a outra tira

Por causa dessa parceria estamos muito felizes hoje, mas também estamos tristes. Hoje foi anunciado o passamento de Sergio Marchionne. O CEO do grupo FCA era italiano e canadense. Recentemente fez uma cirurgia no ombro que lhe gerou complicações. Ele entrou em coma, falecendo dias depois numa clínica em Zurique na Suíça.

Tanto eu, como o Tiago, éramos admiradores confessos de Marchionne, mas por razões diferentes. O profissional de investimentos Tiago Reis seguia de perto os passos do executivo que inicialmente conseguiu salvar a Fiat da insolvência a partir de 2004, quando assumiu o comendo da fábrica italiana de veículos. No ano anterior o Balanço Patrimonial acusava dívidas bilionárias. Em poucos anos o negócio se reergueu.

Fusão com um gigante adormecido

Em 2009, por intermediação do governo americano, a Fiat sob o comando de Marchionne iniciou um processo de aquisição da Chrysler, fabricante norte americana igualmente em situação precária. Sobre a Chrysler, o ítalo-canadense assim se referiu sobre seus primeiros dias a frente do negócio:

“O que eu encontrei foi uma empresa que tinha sido administrada por uma entidade estrangeira por um longo período de tempo, que tinha levado todo o seu conhecimento na saída. Em 2006-2007, ela foi transferida para investidores de capital privado financeiramente competentes — mas não industrialmente — que a administraram por um período de tempo e depois se viram com enormes dificuldades em meio a uma crise. Nós acabamos olhando para o que eram armários vazios em termos de tecnologia e produto. E então começamos do zero.”

A fusão das duas empresas deu origem justamente ao grupo FCA: Fiat Chrysler Automobiles, levando ambas para o mercado global em condições de enfrentar concorrentes ferozes, como as marcas coreanas e japonesas, conhecidas por sua confiabilidade; e marcas chinesas e indianas, baseadas nos custos mais baixos de produção, com mão de obra severamente mais barata. Sem o compartilhamento de tecnologia entre as antigas empresas, com a adoção de plataformas de produção e motores em comum, isso não seria possível.

Na China, algumas empresas literalmente copiam modelos bem-sucedidos criados na Europa e Estados Unidos, o governo oferece subsídios não permitidos nos países integrantes de grandes blocos econômicos e de livre comércio, onde as regras de competição são mais rígidas e igualitárias. Mesmo com o avanço dos chineses nas vendas globais, Marchionne conseguiu elevar a presença da FCA em todos os mercados onde ela atua, pagando salários melhores e priorizando a qualidade dos seus produtos, a custa de muito trabalho e vários anos seguidos sem férias.

Talvez o único executivo que faça frente a Marchionne no setor automobilístico seja o franco-brasileiro Carlos Ghosn, presidente da aliança Renault-Nissan-Mitsubishi que, semelhantemente à FCA, abriga uma séria de marcas tradicionais de dois países, no caso a França e o Japão. Se considerarmos a geração atual de líderes da indústria automobilística, apenas Ghosn serviu por mais tempo que Marchionne como executivo-chefe.

Atuando num mercado sem vantagens competitivas, Sergio Marchionne conduziu a FCA aos lucros, negociando duramente com sindicatos e reduzindo postos de trabalhos, mas preservando marcas tradicionais como Lancia e Maserati com origem na Itália, além de Jeep e Dodge, com origem nos Estados Unidos.

Neste ponto declaro a minha admiração por Marchionne. Ele não era só um negociador viciado em trabalho, dotado de conhecimentos práticos dos melhores contadores e advogados da face da Terra – ele era realmente apaixonado por carros.

Nos estertores de uma era

Os carros estão para o século 21 como os cigarros estão para o século 20. Há quem queira acabar com ambos, os taxando de vilões da humanidade. Fumante inveterado até um ano antes de seu passamento, Marchionne via os carros de outro modo, assim como particularmente os vejo: como máquinas que oferecem a liberdade de ir e vir para seus usuários.

Frio como um canadense, mas eloquente como um italiano, Marchionne foi voz reacionária ao oba-oba dos veículos autônomos e da precipitação em mudar a matriz dos motores movidos a combustão para o sistema híbrido ou elétrico. Para ele, esta transição deveria ser conduzida de modo a preservar o capital das empresas envolvidas no mercado, preservando por tabela uma extensa rede de funcionários diretos e indiretos, até que os mesmos naturalmente se retirassem do mercado de trabalho.

Marchionne também conduziu a Ferrari ao posto de marca mais valiosa e lucrativa entre os modelos esportivos de luxo. Reconhecer isso é uma contradição e tanto, quando um investidor que respeitamos muito, como Luiz Barsi Filho, deixa de comprar um Porsche para andar num carro chinês.

Barsi,me desculpe, mas pela metade do valor de um carro chinês zero quilômetro, como um Chery Tiggo, prefiro ter um Alfa Romeo com vinte anos de uso na garagem. Se o Tiago anda de Uber, eu dirijo um modelo denominado apenas como 156, apelidado de Alfa Ronosso. Não consigo ser apenas racional nestas horas. Quando se fala em carros, sou um sujeito muito passional.

O que é bom precisa ser preservado

Por isso a minha gratidão ao Sergio Marchionne. Um de seus últimos projetos foi levar a Alfa Romeo de volta para a Fórmula 1, através da parceria com a equipe Sauber. A marca do cuore tem muita história. Muito antes da equipe Ferrari ganhar sua primeira corrida, o time do Quadrifoglio colecionou inúmeros Grandes Prêmios na década de 1930, derrotando muitas vezes os carros germânicos da Mercedes-Benz, conhecidos como “Flechas de Prata”.

Curiosamente, a Alfa Romeo carrega a dualidade em seu escudo, que bem poderia ser relacionado com uma balança: de um lado uma cruz e do outro lado uma serpente. As forças se equilibram para nos avisar que os carros podem ser muito úteis, como também podem ser prejudiciais quando guiados sem controle emocional – sem equilíbrio.

Em breve vamos ganhar da Mercedes de novo, mas para Marchionne não havia essa fixação por rivais. Ele gostava de citar uma frase do escritor Ernest Hemingway:

“Não há nada nobre em ser superior ao seu próximo; a verdadeira nobreza está ser superior ao seu antigo ser.”

Valores e legados

Com todas as suas idiossincrasias, Marchionne deixou um legado para pessoas abnegadas como ele. Nós da Suno Research nos identificamos com muitos de seus valores. Nossa concorrência também é feroz e, como ele resgatou o orgulho de americanos e italianos, espelhado em arcas como Dodge e Alfa Romeo, nossa missão é resgatar e fortalecer os princípios do Value Investing no Brasil, que pioneiros como Luiz Barsi Filho e Décio Bazin sempre divulgaram.

O passamento de um vencedor como Marchionne, com apenas 66 anos de idade, nos lembra de que nossa estada neste planeta também é momentânea. No dia triste de sua partida estamos felizes pela chegada de mais um livro, que de certo modo também atua como um legado que talvez possa sobreviver ao nosso dia da partida. Neste balanço de tristeza e felicidade, apuramos que a vida necessita de ambas para ser intensa.

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Jean Tosetto
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