O fla-flu da renda fixa versus renda variável

O Brasil é um país de dimensões continentais cujo esporte mais popular é o futebol. Em função disso, grandes rivalidades entre clubes se estabeleceram em vários estados. Em São Paulo são dois clássicos: o San-São entre Santos e São Paulo e o Derby entre Corinthians e Palmeiras. Em Minas Gerais a principal disputa fica entre o Atlético e o Cruzeiro, e na Bahia entre o Bahia e o Vitória.

Mas talvez o clássico mais incensado pela literatura esportiva seja o Fla-Flu entre Flamengo e Fluminense, disputado no Rio de Janeiro. Num tempo onde o Rio era a capital do Brasil, o futebol carioca era irradiado para todo o país. Já as poucas imagens eram registradas pelo Canal 100, e transmitidas dias depois durante sessões de cinema, antes do filme principal.

Os irmãos Mario Filho e Nelson Rodrigues eram jornalistas influentes nos tempos áureos da Guanabara e trataram de criar uma áurea de romantismo em torno dos times para os quais eles torciam, cuja dicotomia implícita na expressão “Fla-Flu” escapou das quatro linhas dos gramados e passou a ser usada em outros campos de discussões, como na política e na economia.

No mercado financeiro brasileiro também existe um Fla-Flu disputado entre os defensores da renda fixa versus os defensores da renda variável. Especialistas em renda fixa comparam o índice S&P 500 nas últimas três décadas com o resultado dos títulos de renda fixa de longo prazo nos Estados Unidos, para decretar o fim da estratégia do buy and hold, espelhando este cenário para a economia nacional. Já alguns entusiastas da renda variável não se esquivam na diplomacia para comparar a renda fixa com a “perda fixa”.

No meio desse tiroteio verbal, o investidor que está em começo de jornada pode até questionar se esta é uma questão válida e se há algum lado vencedor. O investidor de longo prazo com certa experiência sabe, no entanto, que esta comparação não faz sentido.

Índices não são sínteses

Para começo de conversa, não se pode medir o desempenho da renda variável usando apenas um índice geral, como o IBOV da Bolsa de São Paulo, salvo se um investidor alinhar sua carteira com os ativos usados na composição de tal índice. Ocorre que existem empresas cujos desempenhos são totalmente descolados dos gráficos que representam índices gerais, para o bem ou para o mal.

Igualmente na renda fixa não podemos usar apenas a taxa básica de juros, como a Selic brasileira, ou o CDI – Certificado de Depósito Interbancário – como comparativo para vencer a inflação, uma vez que os índices oficiais que medem a inflação raramente coincidem com a inflação real sentida no bolso das pessoas, por uma razão muito simples: isso varia de cidade para cidade e de padrão de consumo de cada família.

Um casal que mora em São Paulo e depende de automóvel para chegar ao trabalho, além de escola em período integral para os filhos pequenos, terá um custo de vida diverso do casal que vive no sul de Minas Gerais, trabalha em home-office e pode deixar os filhos em meio período na casa de seus avós. O impacto da inflação para estes casais será sentido de modo distinto. Logo, eles não podem replicar a mesma estratégia de investimentos. E qualquer estratégia inteligente de investimentos não pode ser afetada por paixões baseadas em dicotomias, como a da renda fixa versus a renda variável.

Torcidas se unificam pela seleção

Vamos supor que os rendimentos de uma carteira de investimentos estejam atrelados aos resultados de jogos de futebol. O que um investidor inteligente do Rio Grande do Sul faria? Colocaria todas as fixas no Grêmio? Ou focaria apenas no Internacional? Bom, se e ele escolhesse torcer pelos dois times, certamente ele comemoraria títulos em praticamente todos os anos, com todo respeito aos torcedores do Caxias e do Juventude.

Semelhantemente, o investidor de longo prazo não precisa ficar restrito aos títulos de renda fixa versus os ativos de renda variável. No Fla-Flu do mercado de capitais, ele pode vestir as duas camisas – sem virar a casaca. Mais do que isso: ele pode se comportar como o técnico da seleção brasileira de futebol, para montar sua carteira de investimentos chamando apenas os melhores jogadores de cada posição.

O grande duelo do futebol brasileiro ocorreu durante o fim da década e 1950 e boa parte da década de 1960 entre o Santos de Pelé e o Botafogo de Garrincha. O técnico Vicente Feola chamou ambos para disputar a Copa do Mundo de 1958 realizada na Suécia, quando o Brasil ganhou seu primeiro título. Já imaginou se o Feola convocasse apenas jogadores de um time ou de outro? Certamente o Brasil sequer chegaria à final do campeonato, mas o fez com craques de vários times – um exemplo de diversificação.

Entre renda fixa e renda variável fique com a renda passiva

O Fla-Flu da renda fixa versus a renda variável só faz sentido quando os investidores miram apenas na acumulação de capital. Por mais contraditório que isto possa parecer, a construção de um patrimônio não significa a independência financeira no longo prazo, se este patrimônio não for gerador de renda passiva.

Para quem investe com o foco na renda passiva, a dicotomia entre renda fixa e renda variável não faz sentido.

Para o investidor de longo prazo em começo de jornada, investir apenas em renda fixa não lhe trará renda passiva – um atributo que somente a renda variável pode oferecer no mercado financeiro, através de empresas pagadoras de dividendos e fundos imobiliários.

Por outro lado, investir apenas em renda variável pode deixar o investidor exposto, caso ele necessite de parte do dinheiro antes da hora. Na renda variável, o patrimônio infla e desinfla feito um pulmão inspirando e expirando. É muito difícil ter fôlego para sustentar um pulmão inspirando o tempo todo, do mesmo modo que o movimento de expiração tem limites. Se um investidor precisar retirar capital do mercado num ciclo de baixa, os prejuízos poderão ser grandes e irreversíveis.

Portanto, quando um investidor deseja obter renda passiva no longo prazo, é fundamental que ele faça uma composição de carteira com títulos de renda fixa mesclados com ativos de renda variável. É como se um técnico de seleção nacional pudesse escalar jogadores de renda fixa na defesa e craques da renda variável no ataque.

Sem segredos táticos

Uma estratégia simples para seguir separa o capital do investidor em cestas distintas: a primeira é a composição de um fundo de emergência com recursos equivalentes a um ou dois semestres da renda atual do investidor; a segunda cesta seria para alocação de recursos para investimentos de médio prazo, como uma pós-graduação, uma viagem, a reforma de uma casa, a troca de um automóvel; e finalmente a terceira cesta seria dedicada ao longo prazo, visando à independência financeira ou o planejamento de uma aposentadoria em melhores condições.

Note que os investimentos em renda variável estarão presentes apenas na terceira cesta. No longo prazo este montante pode chegar a quase totalidade da carteira do investidor. Porém, em termos qualitativos, somente a renda fixa estará presente nas três cestas, inclusive na destinada ao longo prazo, para compor as reservas que serão usadas em janelas de oportunidades, quando ativos sólidos estiverem descontados, oferecendo maior retorno em forma de dividendos.

Cabe salientar que os investimentos em renda fixa, para quem mira na obtenção de renda passiva, não precisam oferecer retornos excepcionais, pois mais importante é garantir a liquidez deles, desde que haja garantias mínimas de preservação do capital frente ao processo inflacionário. É na renda variável que os retornos mais significativos devem ser buscados, sempre respeitando o critério da margem da segurança – o que no futebol seria como atacar sem abrir a defesa para um contra-ataque.

Resgates imediatos

Portanto, os títulos de longo prazo do Tesouro Direto não são os melhores zagueiros para um investidor com foco em renda passiva. Já o Tesouro Selic seria uma boa pedida, pois ele garantiria retornos minimamente positivos, independente do prazo de resgate. Até a caderneta de poupança, em tempos de inflação controlada, se presta para um bom fundo de emergência, como um beque que sabe rebater a bola antes dela ser chutada para o gol. Algumas aplicações em CDBs – Certificados de Depósitos Bancários – também cumprem bem este papel.

Para o meio de campo, uma boa pedida são as cotas de fundos imobiliários: elas possibilitam renda passiva mensal imediata e ajudam a compor os aportes em demais ativos de renda variável, mesclados com o dinheiro poupado pelo investidor. No ataque, as ações de empresas com sólidos fundamentos, com bom histórico de pagamento de dividendos, atuam como centroavantes que sabem cabecear e chutar com as duas pernas, além de matar a bola no peito.

Fla mais Flu

Deixemos o Fla-Flu para os campos de futebol. No mercado financeiro, ninguém precisa se restringir a uma camisa para ter chances de ser campeão ano sim e outro ano também.

Se a renda fixa está dando pouco retorno além da inflação, quem sem importa? Se a renda variável está num ciclo de baixa que parece interminável, sempre haverá quem comemore: justamente aqueles que investem em ativos geradores de renda passiva, cujos fundamentos não derretem feito os índices gerais das Bolsas ao redor do mundo.

As metas para geração de renda passiva também variam de investidor para investidor, conforme o seu padrão de vida e o lugar onde vive. Portanto, investidores não disputam um campeonato unificado para ver que é o melhor, dado que todos podem ser campeões ao atingirem as próprias metas.

Investir não é como disputar uma Copa do Mundo em poucos jogos eliminatórios: é como disputar um longo campeonato de pontos corridos, no qual a regularidade é mais importante do que os lances esporádicos de genialidade.

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Jean Tosetto
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